O Brasil e o terrorismo:
O atentado contra o escritório da ONU em Bagdá e as reações no Brasil
Paulo Roberto de Almeida*
(*Doutor em Ciências Sociais, diplomata, autor de vários trabalhos sobre relações internacionais e política externa do Brasil).
Artigo publicado na Revista Espaço Académico - Nº28 - Setembro de 2003 - ISSN 1519.6186
Foi preciso, helàs, a trágica morte de um brasileiro trabalhando numa posição de destaque no plano internacional – a do funcionário da ONU Sérgio Vieira de Mello, em Bagdá, no dia 19 de agosto de 2003 – para despertar no Brasil e nos brasileiros um verdadeiro sentimento de horror, suscitando reações de justa indignação, de nítida rejeição ao ato bárbaro e de sincera comiseração pela perda de uma vida devotada à causa humanitária.
Um atentado que se ouviu no Brasil
Devemos em primeiro lugar lembrar que Sérgio Vieira de Mello não foi o único sacrificado pela fúria suicidária e genocida dos terroristas que explodiram um carro bomba junto ao escritório da ONU em Bagdá: junto com ele pereceram pelo menos 20 outras pessoas, além de muitos outros feridos. Caberia também registrar que a comoção no Brasil deveu-se, em parte, a um erro da imprensa internacional – e brasileira – ao identificar, primeiramente, Sérgio Vieira de Mello como um “diplomata brasileiro”, quando ele, na verdade, era apenas brasileiro e “estava” diplomata pela natureza de suas funções desempenhadas na última fase de sua vida. Filho de pai diplomata cassado pelo regime de 1964, ele viveu muito pouco no Brasil e tornou-se um burocrata internacional praticamente desde o início de sua vida profissional, trabalhando para o escritório de refugiados da ONU, com sede em Genebra. Conheci pessoalmente Sérgio Vieira de Mello em Genebra no final dos anos 1980, e minha esposa chegou a dar aulas de Portugês e de cultura brasileira a seus dois filhos, que eram franceses mas que ele pretendia “transformar” em brasileiros, ou pelo menos mais conhecedores da língua e das coisas do Brasil.
Mas esse parênteses não vem ao caso agora, pois eu estava comentando que sua identificação equivocada como “diplomata brasileiro” gerou uma bem-vinda torrente de manifestações de solidariedade e de condolências em direção das autoridades brasileiras, que se movimentaram rapidamente para prestar uma última homenagem a um funcionário internacional que, finalmente, teve muito pouco a ver com o Brasil, e muito pouco a dever ao Brasil, ao longo de uma carreira exemplar de servidor da ONU. Pela natureza de suas funções, desde as missões nos Balcãs, depois no Timor Leste e finalmente no Iraque, ele efetivamente era um diplomata internacional, ainda que suas missões anteriores tenham tido um caráter mais técnico-humanitário do que propriamente diplomático. Ele era, desde junho de 2003, o enviado especial do Secretário-Geral da ONU em missão no Iraque, no desempenho, portanto de funções “diplomáticas”, em licença de seu cargo de Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, uma função bem mais burocrática, mas que também exige altas doses de diplomacia, pois que implicando um tratamento sensível e delicado de atentados aos direitos humanos num contexto inter-estatal no qual a soberania dos países membros ainda não encontra limitações de fato.
Ele poderia ter se tornado um “diplomata brasileiro”, se o golpe sofrido por seu pai, em 1969, não tivesse alimentado em Sérgio uma certa reação contrária ao Brasil e seu serviço exterior. Compreende-se inteiramente, mas isto mais uma vez não vem ao caso neste texto que pretende, tão simplesmente, retomar o problema do terrorismo e o das reações que esse ato sucitou no Brasil, para daí fazer uma reflexão mais geral sobre a atitude de certos meios políticos em relação a esse tipo de ação política. Desejo, de toda forma, deixar registrada minha imensa dor, pessoal, não diplomática e de forma nenhuma “nacional”, pela perda de uma simples vida humana, que, no caso de Sérgio, era a de um funcionário intensamente engajado na defesa de certos princípios que ele tinha em alta conta, enquanto “cidadão do mundo”: a dignidade da vida humana, os esforços para minorar os sofrimentos de populações desprovidas de tudo, o resgate dos sem defesa.
Ação e reação: algumas declarações infelizes
Sua morte trágica despertou, como vimos, as reações mais sentidas e sinceras de dor e, em vista da associação efetuada nos meios políticos e na imprensa internacional, uma vinculação com o Brasil que nunca tinha de fato existido durante suas funções como funcionário da ONU. O presidente Lula declarou três dias de luto oficial no Brasil e as embaixadas foram instruídas a abrir livros de condolências para recolhimento de mensagens e assinaturas. O avião presidencial foi buscar o seu corpo em Bagdá, recolheu a família em Genebra para o memorial em sua homenagem no Rio de Janeiro antes de levá-lo de volta a Genebra para o sepultamento. Estas as informações quanto ao caso em si, que ocupou boa parte da penúltima semana do mês de agosto.
Vejamos agora algumas outras informações do lado das reações ao atentado. Segundo o Informe da Liderança do PT na Câmara dos Deputados, do dia 20 de agosto, para o deputado Paulo Delgado (PT-MG), Sérgio Vieira de Mello “É mais uma vítima do ódio e da animosidade que a política atual dos Estados Unidos impôs à ONU nos países do Oriente Médio”. Ouso arriscar dizer, com base nessas declarações do deputado, que se o atentado tivesse sido feito unicamente contra alvos militares americanos – contra o quartel general das forças americanas no Iraque, por exemplo – a comoção e o sentimento de horror contra atos desse tipo não teriam sido tão grandes e talvez tivessem sido até “justificados”, como “reação”, quem sabe “legítima”, à política de ocupação.
Não quero com isso afirmar que o deputado encontre qualquer justificativa moral em atos bárbaros como esse cometido contra o escritório da ONU e seus funcionários, mas ouso afirmar, sim, que ele revela uma disposição, talvez inconsciente, em classificar atos de terrorismo segundo o destinatário e as circunstâncias. Digo isto porque estou até hoje chocado com o que li na imprensa brasileira no imediato seguimento dos atentados terroristas contra o World Trade Center em Nova York e contra o Pentágono em Washington, que fizeram mais de três mil vítimas inocentes. Desejo expor estas poucas informações antes de retomar o fio de minhas reflexões sobre o terrorismo e seu “acolhimento” em certos meios políticos do Brasil.
No próprio dia, ou no dia seguinte aos bárbaros atentados, a imprensa nacional recolheu declarações do deputado estadual Roque Grazziotin (PT-RS), segundo as quais o parlamentar considerava o atentado a “conseqüência do processo de dominação” norte-americana no mundo (O Estado de São Paulo, 12.09.01). Outro deputado do PT gaúcho, Edson Portilho, disse que, “por coerência”, lamentava que “milhares de vidas tenham sido ceifadas” nos Estados Unidos, mas comparou o atentado a outros episódios em que o governo norte-americano foi responsável: “São as mesmas cenas que o mundo repudiou no Vietnã e no Oriente Médio e que foram patrocinadas pelos Estados Unidos”, afirmou. Por sua vez, a então deputada estadual (hoje federal) Luciana Genro disse que “essa tragédia é de responsabilidade do governo norte-americano, porque os Estados Unidos promovem o terrorismo de Estado no mundo inteiro” (OESP, 12.09.01).
Mais algumas declarações recolhidas pela mesma reportagem do jornal paulista: o Sindicato dos Bancários de Porto Alegre, filiado à CUT, distribuiu uma nota com o seguinte título: “Atentados em Nova York: trabalhadores continuarão combatendo o imperialismo”. No texto, os sindicalistas afirmaram que, “numa consulta a lideranças políticas e sindicais”, concluíram que “a unanimidade das lideranças condena esse tipo de iniciativa, cuja grande massa de vítimas são inocentes. No entanto, também há um consenso de que a política externa dos Estados Unidos é um agente provocador de tal reação”. Por fim, o presidente estadual do PT-RS, Silvino Heck, disse que respeitava “as posições dos movimentos sociais” e concordava que o episódio “nos obriga a repensar a política americana”, mas considerava “injustificável qualquer ato de terrorismo”. Ainda assim, ele condenou antecipadamente a decisão americana de retaliar o atentado (Idem).
Estas são “explicações” que tentam racionalizar ou mesmo “justificar” os atos terroristas, colocando a responsabilidade primeira sobre os ombros da potência imperial. Existe também outro tipo de “racionalização” desse tipo de atentado – quando cometido contra um alvo “imperialista”, entende-se – que tenta minimizar os bárbaros fatos que ceifam vidas inocentes em nome de não se sabe bem qual causa política. Assim, por exemplo, o então deputado (hoje senador) Aloízio Mercadante (PT-SP), secretário de Relações Internacionais do partido, minimizou a importância dos atentados. Para ele, não se deve “exagerar na dimensão do episódio. Qualquer terremoto ou furacão na Flórida faz mais vítimas e provoca estragos muito maiores” (Jornal da Tarde, 18.09.01). Esse tipo de afirmação é no mínimo insensível e, em última instância, revela um certo desprezo pela perda de vidas humanas, quando resultando de algum tipo de “enfrentamento político” que possa colocar num dos lados da balança o tradicional “opressor imperialista”.
O terrorismo à la carte: a caracterização depende da vítima
Pois bem, a questão que eu desejo tratar neste texto é, como disse ao começo, a das reações brasileiras ao terrorismo e o problema do “acolhimento” que ele encontra em certos meios políticos do Brasil quando cometido em determinadas circunstâncias que o tornam – ou parecem tornar – politicamente “palatável”. Não é necessário para isso voltar a expor determinados “fatos” e outras tantas “declarações”, relativamente, por exemplo, ao terrorismo utilizado pelas FARC – ou outras forças políticas – na Colômbia ou ainda à infernal sucessão de atentados suicidas palestinos, retaliações israelenses e novos atos de terror cometidos pelos grupos mais extremistas. Vou deixar de lado, para tal efeito, outras evidências tocantes a atentados e grupos terroristas ativos em determinados países ou regiões – país basco, Irlanda do Norte, Chechênia, Sri Lanka, etc – para concentrar-me em suas manifestações especificamente anti-americanas e fundamentalistas islâmicas.
Para isso retomo uma afirmação anterior minha: se o atentado de Bagdá tivesse envolvido unicamente alvos americanos, ainda que de forma igualmente cruel e suicidária, é possível que não apenas ele tivesse provocado uma certa negligência em relação a seus resultados em termos de vidas humanas, como talvez tivesse suscitado algumas declarações absolutamente inaceitáveis como as que registramos mais acima em relação aos atentados de 2001, todas no sentido da racionalização, da minimização, ou mesmo da justificação, quando não no da “compensação” (provavelmente por algum “crime imperialista” previamente cometido).
Confesso minha surpresa, ou talvez minha incompreensão, ao deparar-me com esse tipo de manifestação “política”: um certo anti-imperialismo primário, que se desdobra em anti-americanismo visceral, consegue embotar determinadas mentes, que aparentemente não se dão conta de que estão coonestando os mais bárbaros atentados aos direitos humanos (no plano individual) ou aos direitos civis de grupos humanos (quando organizados contra países e sociedades), ao mesmo tempo em que, aqueles que assim procedem, conseguem ser condescendentes com forças reacionárias ou absolutamente intolerantes no plano da civilização humana, desde o Iluminismo pelo menos.
Gostaria, em todo caso, de fazer uma distinção entre, de um lado, as “velhas” formas de luta política, que foram utilizadas em diversos continentes para a conquista do poder, e que envolviam até mesmo o uso da força militar e de atentados taticamente dirigidos contra autoridades do “aparelho repressor do Estado burguês”, e, de outro, as novas modalidades de atentados terroristas cujos “objetivos (pretensamente) estratégicos” superam quaisquer considerações táticas para o atingimento de “fins” que se revelam dúbios quando não absolutamente indeterminados.
Cada um tem o terrorista que merece: uma questão de semântica?
Na América Latina, por exemplo, a luta política envolveu meios táticos – até mesmo alguns atentados – para atingir objetivos ditos estratégicos – a tomada do poder – com o recurso clássico aos métodos “consagrados” nessa área: luta guerrilheira, golpe de estado, quartelada, greves gerais, enfim, o cenário habitual assistido pelas duas últimas gerações de militantes revolucionários. Na passagem do século 19 ao 20, ações levadas a cabo por anarquistas envolveram um certo recurso a métodos “terroristas”, mas eram em geral atentados contra dirigentes políticos, resultado em algumas poucas vítimas civis. No decorrer do século 20, porém, a luta guerrilheira respeitou no mais das vezes as “leis da guerra”, ainda que em determinadas ocasiões os setores dirigentes tenham acusado os responsáveis políticos de tais grupos de serem “terroristas”. Assim ocorreu até mesmo no Brasil, quando, no auge da luta político-militar contra o regime ditatorial, a censura à imprensa então reinante obrigava o uso da expressão “terrorista” em lugar do preferido pelos próprios combatentes de esquerda, o de “guerrilheiros”.
De fato, no Brasil, tivemos muito poucos atentados terroristas e os que de fato ocorreram estiveram em geral associados à extrema direita ou mesmo ao aparelho militar de segurança e repressão. Não preciso lembrar alguns episódios de triste memória, como o atentado do Riocentro, em 1981, um “acidente de trabalho” que vitimou os próprios perpetradores, dois militares a serviço do aparelho repressor da ditadura, ou ainda a carta-bomba encaminhada à OAB-RJ, assim como várias outras bombas suspeitas, que eram invariavelmente atribuídos a “terroristas de esquerda”.
Por sua vez, os guerrilheiros urbanos de esquerda (apenas “patriotas equivocados” no entender do Partidão) passaram praticamente o tempo todo assaltando bancos para se municiarem de recursos (“expropriação”), seqüestrando diplomatas para exigir a libertação de companheiros presos ou então cometendo alguns pouco atentados tópicos para efeitos de “propaganda revolucionária”. Tal foi o caso, por exemplo, do atentado a carro bomba contra o quartel-general do II Exército em São Paulo (1968), que vitimou um único soldado, por despreparo deste último em lidar com esse tipo de situação. Num outro caso, mais rumoroso e politicamente contestável, foi assassinado a sangue frio um capitão do Exército americano que estava dando “assistência técnica” a seus colegas brasileiros em táticas de luta anti-guerrilheira. Quanto à guerrilha rural, nenhum dos grupos foi muito adiante e a única tentativa mais estruturada – a do PcdoB, no Araguaia – não tinha a mínima chance de crescer política ou territorialmente até ser esmagada por forças superiores do “exército burguês”.
As muitas sombras na América Latina: da guerrilha ao narcotráfico
Nos demais países, igualmente, a guerrilha – foi o caso obviamente de Cuba, da Nicarágua, de El Salvador, do Peru, da Venezuela, e até certo ponto da Colômbia – observou táticas tipicamente “guevaristas” até ser igualmente derrotada ou reconverter-se na luta política. Os países do Cone Sul conheceram métodos tipicamente urbanos, com poucos ensaios de colunas rurais e algum recurso aos assassinatos políticos (Tupamaros e Montoneros, por exemplo). Foram poucos os casos de desvio para a criminalidade política, para a associação com grupos de narcotraficantes (quando não o exercício direto da atividade) ou para o uso tópico ou extensivo do terrorismo, como ocorreu nos casos mais recentes do Sendero Luminoso, no Peru, ou das FARC, na Colômbia.
Nestes casos extremos, do Sendero Luminoso e das FARC colombianas, nos quais tornou-se notória a criminalidade e a falta de legitimidade política de grupos aos quais já não mais se pode dar o nome de movimentos políticos, não deveria haver nenhuma ambiguidade política por parte dos demais grupos de esquerda no sentido da condenação mais explícita e declarada. O “objetivo” – de toda forma distante – da conquista do poder político não pode mais justificar o emprego de meios criminosos que acabam sacrificando a população no altar de justificativas difusas e de toda forma desprovidas de um mínimo de legitimidade social.
Esses bandos armados passam a viver dos próprios empreendimentos criminosos, que já não seriam justificáveis nem como meros instrumentos da “acumulação de forças”, pois eles acabaram se convertendo, praticamente, no único “negócio” praticado pelos novos senhores da guerra: extorsões, seqüestros, julgamentos sumários e fuzilamentos, produção e transporte de drogas, sem descartar o emprego de atentados de tipo terrorista, já que envolvendo a explosão de lugares públicos com a perda de vidas civis inocentes. Não há dúvida que as regras da guerra foram rompidas, em que pese as justificativas alegadamente políticas – travestidas em linguajar político de “esquerda” – que são mobilizadas para legitimar movimentos desprovidos de qualquer legitimação social.
Um outro universo, um outro terror: o estoque infindável de bombas-humanas
A despeito desses exemplos ignominiosos para uma consciência de “esquerda”, o emprego do terror permanece limitado nos países ocidentais. Outra realidade e outra dimensão têm as ações de grupos fundamentalistas islâmicos, num arco de países que vai do Magreb africano ao Pacífico, passando pelo Oriente Médio, algumas partes da Ásia central e diferentes regiões do sul da Ásia. Não por acaso esse mesmo arco corresponde ao espectro civilizacional islâmico e aqui quero deixar bem claro que não pretendo ser politicamente correto nem exercer qualquer tipo de relativismo histórico.
Pois bem: assim como existe um “anti-capitalismo” visceral, entranhado em várias correntes de nossas esquerdas (que no mais das vezes são absolutamente inocentes de quaisquer ações “criminosas” conduzidas em nome dessa ideologia, ainda que possam ser politicamente estúpidas, aliás como muitos grupos de extrema direita), existe, quero crer, um “anti-humanismo” visceral, irredutível, entranhado em diversos grupos religiosos de extração islâmica ou associados às formas mais integristas desse culto. As bombas, neste caso, são um elemento puramente residual: de resto, existem muito menos bombas disponíveis do que candidatos ao martírio purificador.
Não se trata neste caso de simplesmente preconizar a violência armada para lograr certos fins políticos. Alguns dirigentes do MST, por exemplo, parecem acreditar que estão em Petrogrado, em 1917, às vésperas do assalto ao Palácio de Inverno, e para isso preparam suas “tropas”, num cenário de “embate” futuro contra as forças da burguesia e do latifúndio. Tudo isso é, posto de forma benigna, ingenuidade ou, no máximo, burrice consumada, mas não se pode acusar os dirigentes de tal grupo de praticarem o terrorismo político ou atentados indiscriminados. Eles seguem o antigo padrão leninista e maoísta da conquista do poder, mas parecem diretamente saídos de um velho filme do Eisenstein e conseguem ser tão desfocados e ridiculamente maniqueístas quanto os antigos manuais stalinistas do materialismo dialético.
Eu estou me referindo ao “moderno” terrorismo fundamentalista que, salvo um ou outro caso esparso na rude geografia dos “novos bárbaros”, se revela ser basicamente de inspiração – se tal conceito pode ser usado neste caso – islâmica. Não me consta, por exemplo, que bascos, irlandeses ou colombianos estejam se explodindo a si mesmos todo dia, ou planejando mortes gratuítas em escala “industrial”. O culto da morte não só existe como é consagrado na promessa do paraíso eterno para os “mártires” da causa, paraíso bem estranho para os padrões usualmente recatados da separação sexual na vida terrena, pois que providos de incontáveis virgens para os prazeres do guerreiro.
Uma miopia voluntária ou incapacidade de realizar certas distinções?
A esquerda brasileira não parece ter refletido sobre o terrorismo especificamente islâmico e não me consta que dela tenha emergido uma condenação in totum desse tipo de “luta política”. Na verdade, não vejo como atribuir-se a classificação de “luta política” a ações armadas cujo único objetivo é precisamente esse: infundir o terror, com base numa distinção étnica ou religiosa que nos remete aos piores momentos das guerras de religião, das cruzadas de reconquista ou do genocídio hitlerista.
O fato é que o mundo reencontra, em pleno século 21, alguns velhos fantasmas da intolerância religiosa e do fanatismo político que pensávamos terem sido enterrados há muitos anos, ainda que tenhamos observado o recrudescimento da antiga hidra há menos de duas gerações, no coração da Europa “civilizada” e supostamente laicizada. Em todo caso, as manifestações mais brutais do fanatismo político e religioso – os “nossos” fundamentalistas não parecem tentados pela ação armada, ainda que em defesa da “vida” alguns tenham atentado contra a de outros – parecem hoje confinados a sociedades do arco islâmico que podem ser consideradas “falidas”.
Essa falência não é a de um grupo ou de uma seita, mas de todo um espectro político ou religioso – no Islã ambas as esferas se confundem – que se revela incapaz de realizar o salto para a modernidade. Independentemente da maior ou menor capacidade de sociedades islâmicas específicas realizarem a transição para um conjunto de normas baseadas no “contrato social”, que por sua vez fundamentam um poder político baseado na responsabilidade individual e na plena liberdade de crenças e de atitudes, a natureza dessa devoção religiosa sustenta uma atitude de intolerância e de exclusivismo que está na raiz do comportamento fundamentalista que por sua vez sustenta o terrorismo cego.
Tal postura precisa ser condenada sem qualquer ambigüidade no plano das idéias e suas manifestações práticas e atitudes suicidárias precisam ser combatidas sem qualquer hesitação, se necessário pela força, já que elas são capazes de impor sacrifícios terríveis a comunidades pacíficas (em alguns casos de sua própria sociedade, como revelado no caso bárbaro da guerra civil argelina). Contingências históricas das sociedades islâmicas – com a falência de seus estados não institucionalizados – levaram ao domínio do Ocidente sobre aquela região, com o que surgiu um tipo de terrorismo anti-ocidental que tenta encontrar o seu bode expiatório nessa dominação estrangeira (da qual Israel faria parte).
Capitalismo ou barbárie?: a difícil modernização do “despotismo oriental”
Os processos políticos de modernização são por vezes dolorosos, como revelado nas primeiras “revoluções burguesas” do Ocidente – com decapitação de reis, guerras civis devastadoras etc. – mas o terrorismo islâmico tampouco responde a esses surtos de adaptação a novas situações ou circunstâncias históricas. Ele é totalmente negativo, mesmo para as próprias sociedades que o abrigam e se situa inteiramente no terreno do nihilismo político e da negação de qualquer norma civilizada.
Isso não parece ter sido compreendido pelas forças políticas do Ocidente que são normalmente identificadas com a esquerda, em parte porque esses fundamentalistas também deblateram contra a dominação ocidental e o imperialismo americano, tradicionais demônios ideológicos da esquerda ocidental. Com isso elas acabam sendo coniventes com os piores crimes já cometidos contra civis inocentes de que se tem notícia e que não se resumem aos bárbaros atentados de setembro de 2001. A esquerda ocidental parece ter deixado lado certos imperativos morais que se colocam acima e além das conveniências políticas.
A cegueira mental e a irresponsabilidade política não se dá apenas no caso extremo do fundamentalismo islâmico, de certa forma condenado – ainda que de forma mais ou menos retórica e formal – por quase todos os grupos esclarecidos das sociedades modernas. Ele pode ocorrer em outros casos, também, de conseqüências igualmente trágicas para as sociedades envolvidas. Refiro-me, por exemplo, à fase inicial das guerras balcânicas, quando a pretexto de se opor à intervenção das forças da OTAN – sob comando dos EUA e supostamente a serviço da potência imperial – se permitiu que sérvios (e outros) levassem a efeito limpezas étnicas em certas regiões (Bósnia, Kossovo etc.), até que a indignidade dos atentados aos direitos humanos cometidos por Milosevic e sua tropa de esbirros praticamente obrigou as potências ocidentais a intervirem.
Como os europeus são de muito falar e pouco fazer, coube aos americanos parar com o banho de sangue, e ainda assim apenas sob pressão de sua própria opinião pública, pois se dependesse do comando político eles não teriam voltado a esse tipo de aventura, escaldados que foram por certas desventuras do passado (Líbano, Somália etc.). No caso da Ruanda, como falhou esse tipo de pressão – tanto por desinformação voluntária como por desinteresse – , mais de 500 mil pessoas morreram antes que fosse empreendida uma intervenção humanitária.
Lembro-me muito bem, naquela primeira fase das guerras balcânicas, na primeira metade dos anos 1990, como a esquerda européia realizou manifestações ruidosas contra a OTAN e contra qualquer intervenção militar na Iugoslávia, numa rara demonstração de cegueira política que chegou às raias da imbecilidade criminosa. De certa forma, a mesma coalizão de néscios se reproduziu em relação ao caso do Afeganistão e, com muito mais força, no caso do Iraque (independentemente do caráter mais ou menos ilegal da intervenção dos EUA contra Saddam Hussein).
A denúncia dos “crimes americanos” é atávica em certos grupos, ao mesmo tempo em que se passa sob silêncio todos os atentados aos direitos humanos – constantes, diários, insuportáveis – que se cometem em várias ditaduras do Terceiro Mundo, algumas aliás não muito distantes dos cenários mais amenos existentes nas capitais ocidentais. No próprio Brasil, aliás, o sentimento anti-americano parece ser disseminado, na imprensa e nos meios acadêmicos em geral, por razoes por vezes primárias, mas geralmente contraditórias. De fato, as mesmas pesquisas que indicam uma rejeição muito forte aos EUA e seus dirigentes – que podem ou não corresponder aos estereótipos – também confirmam uma aceitação acrítica de produtos, modismos e outros símbolos culturais da sociedade americana.
Alguns valores são universais, e até mesmo da mais remota antiguidade
Em resumo, os acadêmicos em geral, mas a esquerda em particular, precisa acordar para tomar consciência da leniência com que vem tratando o fenômeno da “luta política” de certos grupos fundamentalistas do arco islâmico. Ela não precisa fazê-lo em nome da “democracia burguesa” ou da “economia de mercado”, e muito menos em nome do “Ocidente capitalista”. Que ela o faça, tão simplesmente, em nome dos valores universais do Iluministmo, tais como existentes em sociedades laicas, tolerantes, ou simplesmente humanistas. Se desejar fazê-lo em nome do budismo, excelente também, pois a defesa da vida humana e dos princípios da liberdade não se resumem aos valores pertencentes ao arco civilizacional da ética judaico-cristã.
O cristianismo, por certo, herdou princípios de respeito à vida que derivam das regras ancestrais do velho judaísmo, mas outras religiões igualmente, como o budismo e outros cultos orientais, chegaram de forma independente à afirmação de normas morais que lograram superar práticas sacrificiais que não se restringem às antigas religiões, já que penetraram cultos com pretensão à universalidade. O secularismo, de toda forma, se fez em grande medida contra a intolerância religiosa e, por extensão, política. Não seria exagerado dizer que certas seitas políticas da nossa era apresentam um comportamento propriamente “religioso”.
O importante seria traçar uma linha moral entre o aceitável e o inaceitável na luta política. O primado do direito internacional e o respeito aos direitos humanos não são invenções burguesas estabelecidas para qualquer opressão de classe, eles são paradigmas do progresso humano num mundo que por vezes pode dar a impressão, pelo espetáculo de miséria ainda acumulada, de avanços apenas relativos nesses campos. Em face das cenas e atos tão bárbaros como os assistidos nos últimos anos e meses, não há como não proclamar-se: Abaixo a intolerância e o fanatismo! Viva a razão!
Artigo publicado na Revista Espaço Académico - Nº28 - Setembro de 2003 - ISSN 1519.6186
Link,http://www.espacoacademico.com.br/028/28pra.htm, consultado a 19 de Agosto de 2007
O atentado contra o escritório da ONU em Bagdá e as reações no Brasil
Paulo Roberto de Almeida*
(*Doutor em Ciências Sociais, diplomata, autor de vários trabalhos sobre relações internacionais e política externa do Brasil).
Artigo publicado na Revista Espaço Académico - Nº28 - Setembro de 2003 - ISSN 1519.6186
Foi preciso, helàs, a trágica morte de um brasileiro trabalhando numa posição de destaque no plano internacional – a do funcionário da ONU Sérgio Vieira de Mello, em Bagdá, no dia 19 de agosto de 2003 – para despertar no Brasil e nos brasileiros um verdadeiro sentimento de horror, suscitando reações de justa indignação, de nítida rejeição ao ato bárbaro e de sincera comiseração pela perda de uma vida devotada à causa humanitária.
Um atentado que se ouviu no Brasil
Devemos em primeiro lugar lembrar que Sérgio Vieira de Mello não foi o único sacrificado pela fúria suicidária e genocida dos terroristas que explodiram um carro bomba junto ao escritório da ONU em Bagdá: junto com ele pereceram pelo menos 20 outras pessoas, além de muitos outros feridos. Caberia também registrar que a comoção no Brasil deveu-se, em parte, a um erro da imprensa internacional – e brasileira – ao identificar, primeiramente, Sérgio Vieira de Mello como um “diplomata brasileiro”, quando ele, na verdade, era apenas brasileiro e “estava” diplomata pela natureza de suas funções desempenhadas na última fase de sua vida. Filho de pai diplomata cassado pelo regime de 1964, ele viveu muito pouco no Brasil e tornou-se um burocrata internacional praticamente desde o início de sua vida profissional, trabalhando para o escritório de refugiados da ONU, com sede em Genebra. Conheci pessoalmente Sérgio Vieira de Mello em Genebra no final dos anos 1980, e minha esposa chegou a dar aulas de Portugês e de cultura brasileira a seus dois filhos, que eram franceses mas que ele pretendia “transformar” em brasileiros, ou pelo menos mais conhecedores da língua e das coisas do Brasil.
Mas esse parênteses não vem ao caso agora, pois eu estava comentando que sua identificação equivocada como “diplomata brasileiro” gerou uma bem-vinda torrente de manifestações de solidariedade e de condolências em direção das autoridades brasileiras, que se movimentaram rapidamente para prestar uma última homenagem a um funcionário internacional que, finalmente, teve muito pouco a ver com o Brasil, e muito pouco a dever ao Brasil, ao longo de uma carreira exemplar de servidor da ONU. Pela natureza de suas funções, desde as missões nos Balcãs, depois no Timor Leste e finalmente no Iraque, ele efetivamente era um diplomata internacional, ainda que suas missões anteriores tenham tido um caráter mais técnico-humanitário do que propriamente diplomático. Ele era, desde junho de 2003, o enviado especial do Secretário-Geral da ONU em missão no Iraque, no desempenho, portanto de funções “diplomáticas”, em licença de seu cargo de Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, uma função bem mais burocrática, mas que também exige altas doses de diplomacia, pois que implicando um tratamento sensível e delicado de atentados aos direitos humanos num contexto inter-estatal no qual a soberania dos países membros ainda não encontra limitações de fato.
Ele poderia ter se tornado um “diplomata brasileiro”, se o golpe sofrido por seu pai, em 1969, não tivesse alimentado em Sérgio uma certa reação contrária ao Brasil e seu serviço exterior. Compreende-se inteiramente, mas isto mais uma vez não vem ao caso neste texto que pretende, tão simplesmente, retomar o problema do terrorismo e o das reações que esse ato sucitou no Brasil, para daí fazer uma reflexão mais geral sobre a atitude de certos meios políticos em relação a esse tipo de ação política. Desejo, de toda forma, deixar registrada minha imensa dor, pessoal, não diplomática e de forma nenhuma “nacional”, pela perda de uma simples vida humana, que, no caso de Sérgio, era a de um funcionário intensamente engajado na defesa de certos princípios que ele tinha em alta conta, enquanto “cidadão do mundo”: a dignidade da vida humana, os esforços para minorar os sofrimentos de populações desprovidas de tudo, o resgate dos sem defesa.
Ação e reação: algumas declarações infelizes
Sua morte trágica despertou, como vimos, as reações mais sentidas e sinceras de dor e, em vista da associação efetuada nos meios políticos e na imprensa internacional, uma vinculação com o Brasil que nunca tinha de fato existido durante suas funções como funcionário da ONU. O presidente Lula declarou três dias de luto oficial no Brasil e as embaixadas foram instruídas a abrir livros de condolências para recolhimento de mensagens e assinaturas. O avião presidencial foi buscar o seu corpo em Bagdá, recolheu a família em Genebra para o memorial em sua homenagem no Rio de Janeiro antes de levá-lo de volta a Genebra para o sepultamento. Estas as informações quanto ao caso em si, que ocupou boa parte da penúltima semana do mês de agosto.
Vejamos agora algumas outras informações do lado das reações ao atentado. Segundo o Informe da Liderança do PT na Câmara dos Deputados, do dia 20 de agosto, para o deputado Paulo Delgado (PT-MG), Sérgio Vieira de Mello “É mais uma vítima do ódio e da animosidade que a política atual dos Estados Unidos impôs à ONU nos países do Oriente Médio”. Ouso arriscar dizer, com base nessas declarações do deputado, que se o atentado tivesse sido feito unicamente contra alvos militares americanos – contra o quartel general das forças americanas no Iraque, por exemplo – a comoção e o sentimento de horror contra atos desse tipo não teriam sido tão grandes e talvez tivessem sido até “justificados”, como “reação”, quem sabe “legítima”, à política de ocupação.
Não quero com isso afirmar que o deputado encontre qualquer justificativa moral em atos bárbaros como esse cometido contra o escritório da ONU e seus funcionários, mas ouso afirmar, sim, que ele revela uma disposição, talvez inconsciente, em classificar atos de terrorismo segundo o destinatário e as circunstâncias. Digo isto porque estou até hoje chocado com o que li na imprensa brasileira no imediato seguimento dos atentados terroristas contra o World Trade Center em Nova York e contra o Pentágono em Washington, que fizeram mais de três mil vítimas inocentes. Desejo expor estas poucas informações antes de retomar o fio de minhas reflexões sobre o terrorismo e seu “acolhimento” em certos meios políticos do Brasil.
No próprio dia, ou no dia seguinte aos bárbaros atentados, a imprensa nacional recolheu declarações do deputado estadual Roque Grazziotin (PT-RS), segundo as quais o parlamentar considerava o atentado a “conseqüência do processo de dominação” norte-americana no mundo (O Estado de São Paulo, 12.09.01). Outro deputado do PT gaúcho, Edson Portilho, disse que, “por coerência”, lamentava que “milhares de vidas tenham sido ceifadas” nos Estados Unidos, mas comparou o atentado a outros episódios em que o governo norte-americano foi responsável: “São as mesmas cenas que o mundo repudiou no Vietnã e no Oriente Médio e que foram patrocinadas pelos Estados Unidos”, afirmou. Por sua vez, a então deputada estadual (hoje federal) Luciana Genro disse que “essa tragédia é de responsabilidade do governo norte-americano, porque os Estados Unidos promovem o terrorismo de Estado no mundo inteiro” (OESP, 12.09.01).
Mais algumas declarações recolhidas pela mesma reportagem do jornal paulista: o Sindicato dos Bancários de Porto Alegre, filiado à CUT, distribuiu uma nota com o seguinte título: “Atentados em Nova York: trabalhadores continuarão combatendo o imperialismo”. No texto, os sindicalistas afirmaram que, “numa consulta a lideranças políticas e sindicais”, concluíram que “a unanimidade das lideranças condena esse tipo de iniciativa, cuja grande massa de vítimas são inocentes. No entanto, também há um consenso de que a política externa dos Estados Unidos é um agente provocador de tal reação”. Por fim, o presidente estadual do PT-RS, Silvino Heck, disse que respeitava “as posições dos movimentos sociais” e concordava que o episódio “nos obriga a repensar a política americana”, mas considerava “injustificável qualquer ato de terrorismo”. Ainda assim, ele condenou antecipadamente a decisão americana de retaliar o atentado (Idem).
Estas são “explicações” que tentam racionalizar ou mesmo “justificar” os atos terroristas, colocando a responsabilidade primeira sobre os ombros da potência imperial. Existe também outro tipo de “racionalização” desse tipo de atentado – quando cometido contra um alvo “imperialista”, entende-se – que tenta minimizar os bárbaros fatos que ceifam vidas inocentes em nome de não se sabe bem qual causa política. Assim, por exemplo, o então deputado (hoje senador) Aloízio Mercadante (PT-SP), secretário de Relações Internacionais do partido, minimizou a importância dos atentados. Para ele, não se deve “exagerar na dimensão do episódio. Qualquer terremoto ou furacão na Flórida faz mais vítimas e provoca estragos muito maiores” (Jornal da Tarde, 18.09.01). Esse tipo de afirmação é no mínimo insensível e, em última instância, revela um certo desprezo pela perda de vidas humanas, quando resultando de algum tipo de “enfrentamento político” que possa colocar num dos lados da balança o tradicional “opressor imperialista”.
O terrorismo à la carte: a caracterização depende da vítima
Pois bem, a questão que eu desejo tratar neste texto é, como disse ao começo, a das reações brasileiras ao terrorismo e o problema do “acolhimento” que ele encontra em certos meios políticos do Brasil quando cometido em determinadas circunstâncias que o tornam – ou parecem tornar – politicamente “palatável”. Não é necessário para isso voltar a expor determinados “fatos” e outras tantas “declarações”, relativamente, por exemplo, ao terrorismo utilizado pelas FARC – ou outras forças políticas – na Colômbia ou ainda à infernal sucessão de atentados suicidas palestinos, retaliações israelenses e novos atos de terror cometidos pelos grupos mais extremistas. Vou deixar de lado, para tal efeito, outras evidências tocantes a atentados e grupos terroristas ativos em determinados países ou regiões – país basco, Irlanda do Norte, Chechênia, Sri Lanka, etc – para concentrar-me em suas manifestações especificamente anti-americanas e fundamentalistas islâmicas.
Para isso retomo uma afirmação anterior minha: se o atentado de Bagdá tivesse envolvido unicamente alvos americanos, ainda que de forma igualmente cruel e suicidária, é possível que não apenas ele tivesse provocado uma certa negligência em relação a seus resultados em termos de vidas humanas, como talvez tivesse suscitado algumas declarações absolutamente inaceitáveis como as que registramos mais acima em relação aos atentados de 2001, todas no sentido da racionalização, da minimização, ou mesmo da justificação, quando não no da “compensação” (provavelmente por algum “crime imperialista” previamente cometido).
Confesso minha surpresa, ou talvez minha incompreensão, ao deparar-me com esse tipo de manifestação “política”: um certo anti-imperialismo primário, que se desdobra em anti-americanismo visceral, consegue embotar determinadas mentes, que aparentemente não se dão conta de que estão coonestando os mais bárbaros atentados aos direitos humanos (no plano individual) ou aos direitos civis de grupos humanos (quando organizados contra países e sociedades), ao mesmo tempo em que, aqueles que assim procedem, conseguem ser condescendentes com forças reacionárias ou absolutamente intolerantes no plano da civilização humana, desde o Iluminismo pelo menos.
Gostaria, em todo caso, de fazer uma distinção entre, de um lado, as “velhas” formas de luta política, que foram utilizadas em diversos continentes para a conquista do poder, e que envolviam até mesmo o uso da força militar e de atentados taticamente dirigidos contra autoridades do “aparelho repressor do Estado burguês”, e, de outro, as novas modalidades de atentados terroristas cujos “objetivos (pretensamente) estratégicos” superam quaisquer considerações táticas para o atingimento de “fins” que se revelam dúbios quando não absolutamente indeterminados.
Cada um tem o terrorista que merece: uma questão de semântica?
Na América Latina, por exemplo, a luta política envolveu meios táticos – até mesmo alguns atentados – para atingir objetivos ditos estratégicos – a tomada do poder – com o recurso clássico aos métodos “consagrados” nessa área: luta guerrilheira, golpe de estado, quartelada, greves gerais, enfim, o cenário habitual assistido pelas duas últimas gerações de militantes revolucionários. Na passagem do século 19 ao 20, ações levadas a cabo por anarquistas envolveram um certo recurso a métodos “terroristas”, mas eram em geral atentados contra dirigentes políticos, resultado em algumas poucas vítimas civis. No decorrer do século 20, porém, a luta guerrilheira respeitou no mais das vezes as “leis da guerra”, ainda que em determinadas ocasiões os setores dirigentes tenham acusado os responsáveis políticos de tais grupos de serem “terroristas”. Assim ocorreu até mesmo no Brasil, quando, no auge da luta político-militar contra o regime ditatorial, a censura à imprensa então reinante obrigava o uso da expressão “terrorista” em lugar do preferido pelos próprios combatentes de esquerda, o de “guerrilheiros”.
De fato, no Brasil, tivemos muito poucos atentados terroristas e os que de fato ocorreram estiveram em geral associados à extrema direita ou mesmo ao aparelho militar de segurança e repressão. Não preciso lembrar alguns episódios de triste memória, como o atentado do Riocentro, em 1981, um “acidente de trabalho” que vitimou os próprios perpetradores, dois militares a serviço do aparelho repressor da ditadura, ou ainda a carta-bomba encaminhada à OAB-RJ, assim como várias outras bombas suspeitas, que eram invariavelmente atribuídos a “terroristas de esquerda”.
Por sua vez, os guerrilheiros urbanos de esquerda (apenas “patriotas equivocados” no entender do Partidão) passaram praticamente o tempo todo assaltando bancos para se municiarem de recursos (“expropriação”), seqüestrando diplomatas para exigir a libertação de companheiros presos ou então cometendo alguns pouco atentados tópicos para efeitos de “propaganda revolucionária”. Tal foi o caso, por exemplo, do atentado a carro bomba contra o quartel-general do II Exército em São Paulo (1968), que vitimou um único soldado, por despreparo deste último em lidar com esse tipo de situação. Num outro caso, mais rumoroso e politicamente contestável, foi assassinado a sangue frio um capitão do Exército americano que estava dando “assistência técnica” a seus colegas brasileiros em táticas de luta anti-guerrilheira. Quanto à guerrilha rural, nenhum dos grupos foi muito adiante e a única tentativa mais estruturada – a do PcdoB, no Araguaia – não tinha a mínima chance de crescer política ou territorialmente até ser esmagada por forças superiores do “exército burguês”.
As muitas sombras na América Latina: da guerrilha ao narcotráfico
Nos demais países, igualmente, a guerrilha – foi o caso obviamente de Cuba, da Nicarágua, de El Salvador, do Peru, da Venezuela, e até certo ponto da Colômbia – observou táticas tipicamente “guevaristas” até ser igualmente derrotada ou reconverter-se na luta política. Os países do Cone Sul conheceram métodos tipicamente urbanos, com poucos ensaios de colunas rurais e algum recurso aos assassinatos políticos (Tupamaros e Montoneros, por exemplo). Foram poucos os casos de desvio para a criminalidade política, para a associação com grupos de narcotraficantes (quando não o exercício direto da atividade) ou para o uso tópico ou extensivo do terrorismo, como ocorreu nos casos mais recentes do Sendero Luminoso, no Peru, ou das FARC, na Colômbia.
Nestes casos extremos, do Sendero Luminoso e das FARC colombianas, nos quais tornou-se notória a criminalidade e a falta de legitimidade política de grupos aos quais já não mais se pode dar o nome de movimentos políticos, não deveria haver nenhuma ambiguidade política por parte dos demais grupos de esquerda no sentido da condenação mais explícita e declarada. O “objetivo” – de toda forma distante – da conquista do poder político não pode mais justificar o emprego de meios criminosos que acabam sacrificando a população no altar de justificativas difusas e de toda forma desprovidas de um mínimo de legitimidade social.
Esses bandos armados passam a viver dos próprios empreendimentos criminosos, que já não seriam justificáveis nem como meros instrumentos da “acumulação de forças”, pois eles acabaram se convertendo, praticamente, no único “negócio” praticado pelos novos senhores da guerra: extorsões, seqüestros, julgamentos sumários e fuzilamentos, produção e transporte de drogas, sem descartar o emprego de atentados de tipo terrorista, já que envolvendo a explosão de lugares públicos com a perda de vidas civis inocentes. Não há dúvida que as regras da guerra foram rompidas, em que pese as justificativas alegadamente políticas – travestidas em linguajar político de “esquerda” – que são mobilizadas para legitimar movimentos desprovidos de qualquer legitimação social.
Um outro universo, um outro terror: o estoque infindável de bombas-humanas
A despeito desses exemplos ignominiosos para uma consciência de “esquerda”, o emprego do terror permanece limitado nos países ocidentais. Outra realidade e outra dimensão têm as ações de grupos fundamentalistas islâmicos, num arco de países que vai do Magreb africano ao Pacífico, passando pelo Oriente Médio, algumas partes da Ásia central e diferentes regiões do sul da Ásia. Não por acaso esse mesmo arco corresponde ao espectro civilizacional islâmico e aqui quero deixar bem claro que não pretendo ser politicamente correto nem exercer qualquer tipo de relativismo histórico.
Pois bem: assim como existe um “anti-capitalismo” visceral, entranhado em várias correntes de nossas esquerdas (que no mais das vezes são absolutamente inocentes de quaisquer ações “criminosas” conduzidas em nome dessa ideologia, ainda que possam ser politicamente estúpidas, aliás como muitos grupos de extrema direita), existe, quero crer, um “anti-humanismo” visceral, irredutível, entranhado em diversos grupos religiosos de extração islâmica ou associados às formas mais integristas desse culto. As bombas, neste caso, são um elemento puramente residual: de resto, existem muito menos bombas disponíveis do que candidatos ao martírio purificador.
Não se trata neste caso de simplesmente preconizar a violência armada para lograr certos fins políticos. Alguns dirigentes do MST, por exemplo, parecem acreditar que estão em Petrogrado, em 1917, às vésperas do assalto ao Palácio de Inverno, e para isso preparam suas “tropas”, num cenário de “embate” futuro contra as forças da burguesia e do latifúndio. Tudo isso é, posto de forma benigna, ingenuidade ou, no máximo, burrice consumada, mas não se pode acusar os dirigentes de tal grupo de praticarem o terrorismo político ou atentados indiscriminados. Eles seguem o antigo padrão leninista e maoísta da conquista do poder, mas parecem diretamente saídos de um velho filme do Eisenstein e conseguem ser tão desfocados e ridiculamente maniqueístas quanto os antigos manuais stalinistas do materialismo dialético.
Eu estou me referindo ao “moderno” terrorismo fundamentalista que, salvo um ou outro caso esparso na rude geografia dos “novos bárbaros”, se revela ser basicamente de inspiração – se tal conceito pode ser usado neste caso – islâmica. Não me consta, por exemplo, que bascos, irlandeses ou colombianos estejam se explodindo a si mesmos todo dia, ou planejando mortes gratuítas em escala “industrial”. O culto da morte não só existe como é consagrado na promessa do paraíso eterno para os “mártires” da causa, paraíso bem estranho para os padrões usualmente recatados da separação sexual na vida terrena, pois que providos de incontáveis virgens para os prazeres do guerreiro.
Uma miopia voluntária ou incapacidade de realizar certas distinções?
A esquerda brasileira não parece ter refletido sobre o terrorismo especificamente islâmico e não me consta que dela tenha emergido uma condenação in totum desse tipo de “luta política”. Na verdade, não vejo como atribuir-se a classificação de “luta política” a ações armadas cujo único objetivo é precisamente esse: infundir o terror, com base numa distinção étnica ou religiosa que nos remete aos piores momentos das guerras de religião, das cruzadas de reconquista ou do genocídio hitlerista.
O fato é que o mundo reencontra, em pleno século 21, alguns velhos fantasmas da intolerância religiosa e do fanatismo político que pensávamos terem sido enterrados há muitos anos, ainda que tenhamos observado o recrudescimento da antiga hidra há menos de duas gerações, no coração da Europa “civilizada” e supostamente laicizada. Em todo caso, as manifestações mais brutais do fanatismo político e religioso – os “nossos” fundamentalistas não parecem tentados pela ação armada, ainda que em defesa da “vida” alguns tenham atentado contra a de outros – parecem hoje confinados a sociedades do arco islâmico que podem ser consideradas “falidas”.
Essa falência não é a de um grupo ou de uma seita, mas de todo um espectro político ou religioso – no Islã ambas as esferas se confundem – que se revela incapaz de realizar o salto para a modernidade. Independentemente da maior ou menor capacidade de sociedades islâmicas específicas realizarem a transição para um conjunto de normas baseadas no “contrato social”, que por sua vez fundamentam um poder político baseado na responsabilidade individual e na plena liberdade de crenças e de atitudes, a natureza dessa devoção religiosa sustenta uma atitude de intolerância e de exclusivismo que está na raiz do comportamento fundamentalista que por sua vez sustenta o terrorismo cego.
Tal postura precisa ser condenada sem qualquer ambigüidade no plano das idéias e suas manifestações práticas e atitudes suicidárias precisam ser combatidas sem qualquer hesitação, se necessário pela força, já que elas são capazes de impor sacrifícios terríveis a comunidades pacíficas (em alguns casos de sua própria sociedade, como revelado no caso bárbaro da guerra civil argelina). Contingências históricas das sociedades islâmicas – com a falência de seus estados não institucionalizados – levaram ao domínio do Ocidente sobre aquela região, com o que surgiu um tipo de terrorismo anti-ocidental que tenta encontrar o seu bode expiatório nessa dominação estrangeira (da qual Israel faria parte).
Capitalismo ou barbárie?: a difícil modernização do “despotismo oriental”
Os processos políticos de modernização são por vezes dolorosos, como revelado nas primeiras “revoluções burguesas” do Ocidente – com decapitação de reis, guerras civis devastadoras etc. – mas o terrorismo islâmico tampouco responde a esses surtos de adaptação a novas situações ou circunstâncias históricas. Ele é totalmente negativo, mesmo para as próprias sociedades que o abrigam e se situa inteiramente no terreno do nihilismo político e da negação de qualquer norma civilizada.
Isso não parece ter sido compreendido pelas forças políticas do Ocidente que são normalmente identificadas com a esquerda, em parte porque esses fundamentalistas também deblateram contra a dominação ocidental e o imperialismo americano, tradicionais demônios ideológicos da esquerda ocidental. Com isso elas acabam sendo coniventes com os piores crimes já cometidos contra civis inocentes de que se tem notícia e que não se resumem aos bárbaros atentados de setembro de 2001. A esquerda ocidental parece ter deixado lado certos imperativos morais que se colocam acima e além das conveniências políticas.
A cegueira mental e a irresponsabilidade política não se dá apenas no caso extremo do fundamentalismo islâmico, de certa forma condenado – ainda que de forma mais ou menos retórica e formal – por quase todos os grupos esclarecidos das sociedades modernas. Ele pode ocorrer em outros casos, também, de conseqüências igualmente trágicas para as sociedades envolvidas. Refiro-me, por exemplo, à fase inicial das guerras balcânicas, quando a pretexto de se opor à intervenção das forças da OTAN – sob comando dos EUA e supostamente a serviço da potência imperial – se permitiu que sérvios (e outros) levassem a efeito limpezas étnicas em certas regiões (Bósnia, Kossovo etc.), até que a indignidade dos atentados aos direitos humanos cometidos por Milosevic e sua tropa de esbirros praticamente obrigou as potências ocidentais a intervirem.
Como os europeus são de muito falar e pouco fazer, coube aos americanos parar com o banho de sangue, e ainda assim apenas sob pressão de sua própria opinião pública, pois se dependesse do comando político eles não teriam voltado a esse tipo de aventura, escaldados que foram por certas desventuras do passado (Líbano, Somália etc.). No caso da Ruanda, como falhou esse tipo de pressão – tanto por desinformação voluntária como por desinteresse – , mais de 500 mil pessoas morreram antes que fosse empreendida uma intervenção humanitária.
Lembro-me muito bem, naquela primeira fase das guerras balcânicas, na primeira metade dos anos 1990, como a esquerda européia realizou manifestações ruidosas contra a OTAN e contra qualquer intervenção militar na Iugoslávia, numa rara demonstração de cegueira política que chegou às raias da imbecilidade criminosa. De certa forma, a mesma coalizão de néscios se reproduziu em relação ao caso do Afeganistão e, com muito mais força, no caso do Iraque (independentemente do caráter mais ou menos ilegal da intervenção dos EUA contra Saddam Hussein).
A denúncia dos “crimes americanos” é atávica em certos grupos, ao mesmo tempo em que se passa sob silêncio todos os atentados aos direitos humanos – constantes, diários, insuportáveis – que se cometem em várias ditaduras do Terceiro Mundo, algumas aliás não muito distantes dos cenários mais amenos existentes nas capitais ocidentais. No próprio Brasil, aliás, o sentimento anti-americano parece ser disseminado, na imprensa e nos meios acadêmicos em geral, por razoes por vezes primárias, mas geralmente contraditórias. De fato, as mesmas pesquisas que indicam uma rejeição muito forte aos EUA e seus dirigentes – que podem ou não corresponder aos estereótipos – também confirmam uma aceitação acrítica de produtos, modismos e outros símbolos culturais da sociedade americana.
Alguns valores são universais, e até mesmo da mais remota antiguidade
Em resumo, os acadêmicos em geral, mas a esquerda em particular, precisa acordar para tomar consciência da leniência com que vem tratando o fenômeno da “luta política” de certos grupos fundamentalistas do arco islâmico. Ela não precisa fazê-lo em nome da “democracia burguesa” ou da “economia de mercado”, e muito menos em nome do “Ocidente capitalista”. Que ela o faça, tão simplesmente, em nome dos valores universais do Iluministmo, tais como existentes em sociedades laicas, tolerantes, ou simplesmente humanistas. Se desejar fazê-lo em nome do budismo, excelente também, pois a defesa da vida humana e dos princípios da liberdade não se resumem aos valores pertencentes ao arco civilizacional da ética judaico-cristã.
O cristianismo, por certo, herdou princípios de respeito à vida que derivam das regras ancestrais do velho judaísmo, mas outras religiões igualmente, como o budismo e outros cultos orientais, chegaram de forma independente à afirmação de normas morais que lograram superar práticas sacrificiais que não se restringem às antigas religiões, já que penetraram cultos com pretensão à universalidade. O secularismo, de toda forma, se fez em grande medida contra a intolerância religiosa e, por extensão, política. Não seria exagerado dizer que certas seitas políticas da nossa era apresentam um comportamento propriamente “religioso”.
O importante seria traçar uma linha moral entre o aceitável e o inaceitável na luta política. O primado do direito internacional e o respeito aos direitos humanos não são invenções burguesas estabelecidas para qualquer opressão de classe, eles são paradigmas do progresso humano num mundo que por vezes pode dar a impressão, pelo espetáculo de miséria ainda acumulada, de avanços apenas relativos nesses campos. Em face das cenas e atos tão bárbaros como os assistidos nos últimos anos e meses, não há como não proclamar-se: Abaixo a intolerância e o fanatismo! Viva a razão!
Artigo publicado na Revista Espaço Académico - Nº28 - Setembro de 2003 - ISSN 1519.6186
Link,http://www.espacoacademico.com.br/028/28pra.htm, consultado a 19 de Agosto de 2007